segunda-feira, 24 de novembro de 2014

"Sobre Águas Passadas"


    Venho hoje dar uma pausa na biologia, nos problemas sociais, nos gays, no feminismo, para fazer uma reflexão a pedido de um amigo. Águas passadas foi o tema sugerido por ele, e também faz algum tempo que eu queria escrever sobre a minha percepção do tempo.
    Como todo tema, dou-me o ócio para refletir e dissertar com melhor sabedoria. Para todo texto meu há uma reflexão e, para uma boa reflexão, é preciso definir parâmetros, estabelecer definições e etc. Nós, humanos, gostamos dos métodos. Gostamos de medir absolutamente tudo e quando não conseguimos medida, nós comparamos (o que não deixa de ser outro método para medir). Gostaria de conhecer um humano que não mede nada.
    Medidas estão intimamente relacionadas ao tema de hoje.

    Pensar no passado é tão inevitável quanto pensar no tempo -eu ousaria dizer impossível- uma vez que o passado é uma das faces do tempo. E o próprio passado tem suas diversas faces: temos o agora pouco, o ontem, o dez anos atrás, etc. O tempo e um bom candidato a ser deus hindu, com seus inúmeros rostos e o poder etéreo que tem sobre os humanos.comparar o tempo com deus ou alguém é mais um metodismo meu. Aliás, nosso. Humanos gostam de personificar naturezas "misteriosas" que atuam sobre nossa existência, que não são feitas de nenhum material. Tempo, morte, vida, emoções. Não podemos vê-las, não podemos tocá-las, mal podemos ilustrá-las, porém são tão certas e reais quanto o sol que queima sobre nossas cabeças todos os dias, então fazemos como Javé: criamos a nossa imagem e semelhança.

    O passado não passa de desencadeamentos do presente somadas a nossas ações.
    Há muitas gerações, as pessoas sonham em voltar ao passado. Criamos paradoxos, teorias, hipóteses, filmes, livros e qualquer tipo de entretenimento possível. E a troco de quê? Como estar naquilo que não existe? É como o futuro, não existe.
     Não, meu caro leitor, que eu esteja dizendo que todo esse esforço tenha sido tempo desperdiçado, são deveras interessantes, na verdade. Acontece que temos tanto desejo de voltar ao passado porque ele vive na nossa imaginação como o Papai Noel e o Coelho da Páscoa vive na imaginação de uma criança. 
    Nós nos desesperamos, nós choramos, nós rimos, nós sentimos saudades, nós nos arrependemos, nós sonhamos, mas no final, nós somos patéticos quando se trata das nossas lembranças, quando se trata de remeter ao passado. É verdade que dentre tanta nostalgia há sentimentos acolhedores e até nobres, mas isso tudo não passa de inutilidade. Entretanto, a análise minuciosa do nosso passado é de grande serventia ao nosso crescimento pessoal, às vezes cutucar aquela ferida abertas ter coragem para costurá-la, por mais que possa doer, trará paz  ao seu presente.outras vezes, apenas gostamos de remoer cacos de vidro dentro das nossas almas e acabamos mais rasgados. Essa via de mão dupla depende da sua escolha e da sua forca de vontade em não sucumbir aos cacos de vidro.
    
    Outra coisa que me atormenta tanto quanto o passado é o futuro. É imaginar como pessoas que vivem comigo agora farão parte das minhas lembranças um dia.
    A única pessoa que você tem que aturar a vida inteira é você mesmo. Isso soa meio solitário. E de fato é.
    Pensar que um dia aqueles -ou aquele- que você tanto gosta deixará de fazer parte dos seus presentes momentos para se estabelecer nas suas memórias para sempre. Pessoas que amamos, pessoas que perdemos, pessoas que são dignas da nossas lembranças e pessoas que não passam de cacos (que podem ser a mesma pessoa, a propósito). 
    Às vezes nem é a pessoa em si, mas o relacionamento que tivera com ela. Um grande amor, uma amizade verdadeira. Alguém que um dia você abraçou com forca e prometeu jamais deixar ir, agora não passa de um vulto no canto do olho. Alguém que um dia você chamou de irmão ou irmã agora não tem mais nada em comum contigo, nem mesmo o tempo teremos em comum.
    Aceitar as pessoas que viverão no passado é tão importante quanto aceitar as pessoas que já vivem nele. A única pessoa que não pode viver no seu passado é você mesmo.
    
    Um dia você se pega olhando pela janela e pergunta a 'alguém', "Como será que estas?", "Será que lembra de mim?". É ainda mais triste imaginar que estas pessoas não mais morarão nas suas doces lembranças. A primeira coisa que vai embora é a voz. O som das risadas, do choro, das longas e curtas conversas. Depois o tempo vai lixando o rosto delas até que a única prova de que existiram seja o nome ou uma vaga imagem humana.
    Compreender os efeitos do tempo sobre nosso campo emocional é uma tarefa complexa e até dolorosa.
    Entretanto.
    Se você tiver sorte, ainda poderá ler velhas palavras  daquelas pessoas queridas e resgatar relances desses bons tempos.
    As palavras são as mais acolhedoras viagens no tempo, por isso as prezo tanto.

domingo, 17 de agosto de 2014

A Glorificação do Homúnculo.

    Antigamente, lá pelo século XVII, no ano de 1677, um pesquisador observou uma amostra de seu próprio sêmen e encontrou o que chamamos hoje de espermatozoide. Devido a precária qualidade da ferramenta de observação, ele percebeu que havia uma massa densa dentro dessa célula que se movia freneticamente. A isso, Leeuwenhoek chamou de homúnculo. O homúnculo seria um minúsculo ser humano que se desenvolveria no útero quando a mulher fosse inseminada. E lá, ele só acumularia massa até a hora do parto, sendo a fêmea de toda e qualquer espécie um mero recipiente para o crescimento do ser. (Aqui, focaremos mais na espécie humana).
O desenho de um homúnculo e o esquema de um espermatozoide e suas estruturas.
   
    Entretanto, depois de muita ciência, muita observação, muita pesquisa, a ideia do homúnculo continua firme e forte na nossa consciência social. Sabemos que o espermatozoide fecunda o ovócito ("óvulo") e da união destes suceder-se-á um novo ser. Porém, quando se trata do assunto, nós sempre temos a visão simplória de que o espermatozoide é o único responsável pela formação da vida. E não é de se surpreender: Temos o homem batalhador, que precisa correr atrás da dama, seja cortejando-a ou lutando por ela. Depois temos o guerreiro espermatozoide, que atravessa os úmidos e traiçoeiros caminhos do sistema reprodutor feminino, lutando bravamente contra as defesas da mulher e seus concorrentes! Enquanto isso, lá está o ovócito, parado, grande, sozinho, esperando unicamente ser fecundado, não tendo trabalho nenhum. É certo que as células femininas não se movimentam, mas é injusto que o gameta masculino leve toda a glória. E podemos perceber essa glória em citações do dia-a-dia:

"Você devia era ter ficado no saco do seu pai!"
"O papai tem a sementinha. Quando ele planta na mamãe, sai um bebezinho que nem você era."
"O homem que se masturba comete um genocídio, pois está matando crianças." (Adoro essa, vou comentá-la com mais calma mais adiante).

    Um espermatozoide não contém nenhum homúnculo, mas sim meio conjunto de cromossomos da espécie (e mais algumas organelas que não são interessantes nessa discussão). E o ovócito contém a outra metade desse conjunto, sendo que não existe vida sem a união de ambos. Por isso é ridículo falar que a masturbação é pecado usando como justificativa um conceito biológico do qual você desconhece, já que não há criança nenhuma nessa porra (rs, sacou o trocadilho? Não podia faltar, óbvio). Até porque a mulher ovocita (liberação do ovócito, ocorre logo antes da menstruação) regularmente em grande parte da sua vida, ou seja, assim como na masturbarão masculina, ela libera gametas que também hão de se perder se não forem fecundados. É um processo fisiológico natural de perda de gametas, mas que não é considerado pecaminoso, então porque um homem se masturbar seria? A única e verdadeira justificativa para esse pecado -na SUA RELIGIÃO (via de regra, as cristãs)- é relacionar esse ato ao sentimento do bel prazer carnal.
Do desenho Osmose Jones. Deveriam ser dois fundadores.
Vários espermatozoides tentando fecundar um ovócito.
Note a diferença de tamanho entre os gametas

    Além do mais, para desconstruir essa imagem do espermatozoide, grande fundador da vida, ele doa solamente seu material genético, deixando todo o resto para traz ou inutilizado, o acrossoma, as mitocôndrias, tudo menos o precioso material genético. O ovócito, por outro lado, é encarregado de nutrir a, agora, nova célula-ovo (a mesma de todo o texto, só que fecundada). São as organelas do antigo ovócito e o seu rico citoplasma que tornará possível o prosseguimento da vida e seus mecanismos citoplasmáticos e de membrana que impedirão a entrada de espermatozoides invasores (se você estava se gabando por ser o "primeiro", camarada, tenho más notícias. Vários gametas masculinos alcançam o ovócito, mas apenas um entra).
Portanto, o gameta feminino não é só uma célula inerte a espera de seu "príncipe" de flagelo longo, ele hospedará e fornecerá o que é preciso para - CLICHÊ ALERT - a continuidade do grande milagre da vida.
Já que se trata de homúnculos, uma cena tocante de Fullmetal Alchemist B.
Ed segurando o homúnculo Orgulho.
Só uma coisa que eu não entendo. Se achavam que o homem fornecia a massa para o bolo e a mulher era só o forninho, por que culpavam-nas (e ainda culpam) quando nascia uma filha ao invés de um varão?
Homens..., vai entender.

Obs.: nenhuma imagem pertence a mim.